O post contém spoilers da primeira temporada de Demolidor
Fiquei impressionado com a série do Demolidor, da Netflix. A violência poética, os personagens, o enredo, a construção do herói… são tantas partes impecáveis e elogios que fica difícil escolher uma só. A série só evidencia o quanto o filme de 2003 foi ruim (mas com uma ótima trilha sonora, pra quem não conhece).
Mas o que mais me chamou a atenção não foi só a violência que, sinceramente, depois de um tempo, começa a perder o impacto. Especialmente depois da cena impecável e sem cortes do segundo episódio, cheia de socos, chutes e piruetas na parede.
O enredo, pra mim, também não é o principal. Se você já está familiarizado com histórias de super-heróis (e com a história do próprio Demolidor), a trama não surpreende tanto, apesar de ter momentos fantásticos.
O ponto mais marcante da série foi o antagonista, o Rei do Crime Wilson Fisk.
A maneira como ele foi construído e apresentado, começando como uma sombra perigosa que pairava sobre Hell’s Kitchen, até aparecer e revelar sua personalidade aos poucos, em grande parte através do seu interesse romântico, Vanessa, fez com que eu me aproximasse bastante do personagem e até sentisse por ele.
Fisk não é apenas um vilão – ele é o herói de sua própria história, como todo bom antagonista.
Descobrimos suas intenções, que não são tão diferentes das de Matt Murdock, e entendemos seu ponto de vista, apesar de não necessariamente concordarmos com ele, sobretudo por causa dos meios empregados. Fisk é complexo. Como o ator que o interpreta, Vincent D’Onofrio, disse em entrevista, “Nosso Fisk é uma criança e um monstro”.
Ele é a antítese perfeita do Demolidor – assim como Murdock, Fisk também quer salvar sua cidade por trás dos panos. A diferença está na bússola moral.
Vamos ver como foi essa criança monstro foi gerada.
Passado
Bill Fisk, pai de Wilson, era um alcóolatra que batia na esposa. Bill desejava fama e sucesso, mas era um fracassado e descontava sua frustração com violência. Wilson, gordinho desde criança, não compartilhava das características do pai – mostrava-se um menino sensível e calmo aos 12 anos. Ou, pelo menos, escondia sua inclinação à raiva.
Certo dia, Wilson chegou em casa sangrando. Apanhou de um colega na rua ao defender o pai, que estava sendo ridicularizado por não ter conseguido se eleger. Bill leva Wilson até o colega e espanca o garoto, mandando Wilson chutá-lo até descarregar toda a raiva e “aprender a ser homem.” Wilson parece atingir uma certa satisfação relutante com a descarga de estresse.
Em casa, Wilson fica de castigo, olhando para a parede, para pensar no homem que quer ser. “Você é meu filho. Deveria ser um rei, e não um gordo marica”. A mãe de Wilson reclama com Bill sobre o empréstimo que ele fez para a campanha eleitoral. Ele não gosta do confronto e bate nela mais uma vez, ignorando as súplicas e os gemidos da mulher.
Wilson parece sentir a dor das pancadas junto com a mãe, se retorcendo a cada cintada. Mostrando que também poderia ser o Thor, o garoto pega um martelo e arrebenta a cabeça do pai.
Consequências
O Ministério da Saúde adverte: passar uma infância recheada com abuso doméstico, alcoolismo, raiva e homicídio pode causar sérios transtornos psicológicos. Como esse passado assombra o presente de Wilson Fisk?
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Instabilidades
Wilson Fisk é vulnerável e emocionalmente instável. No fundo, é apenas um menino que quis defender a mãe. Crescer com esses complexos o deixou com problemas para controlar as emoções, e o homicídio aos 12 anos o transformou em sociopata. Com essa mistura, Wilson explode com facilidade, consumido pela raiva — fazendo mingau da cabeça de um russo com a porta de um carro, porque ele atrapalhou seu jantar romântico, estrangulando um repórter em casa, matando um antigo sócio que o traiu, mesmo com o risco de pôr tudo pelo que lutou a perder (como aconteceu). Por outro lado, ele também luta para expressar seu lado gentil para Vanessa, com palavras e gestos.
Wilson sempre usa as abotoaduras do pai nas camisas para se lembrar de que não é um monstro como ele foi. Essa constante lembrança, junto com a pintura que ele comprou de Vanessa, idêntica à parede que ele ficou olhando no dia fatídico, atrapalham seu sono. Fisk tem pesadelos frequentes e acorda de madrugada, suando, assombrado por esse passado vermelho, com a imagem da parede pregada com sangue em sua mente. É bom ver esse outro lado do assassino — cada morte leva um pouco de quem puxa o gatilho, também.
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Laços
Não temos outras partes tão claras do passado de Fisk, mas percebemos que ele tem problemas de comunicação interpessoal. O Rei do Crime parece lutar com cada pronúncia, e suas interações são sofridas. Isso faz com que ele meça as palavras, parça. Suas frases devem valer a pena. Quando possível, ele prefere permanecer distante e deixar seu amigo Wesley mediar os relacionamentos profissionais.
Fisk também é carente. Por sua personalidade e “profissão”, não pode confiar em qualquer um. Então mantém poucos laços, mas que são inquebrantáveis – sua mãe, Wesley e, mais recentemente, Vanessa. Fora isso, não há mais ninguém em sua vida pessoal.
Podemos ver que o respeito de Wilson se estende também à Madame Gao. Mulheres fortes afetam o antagonista em um nível mais profundo, além do intelectual e físico.
Apesar do protagonista ser Matt Murdock, Fisk tem quase o mesmo tempo de tela. O acesso ao círculo de interações e relacionamentos dele foi fundamental para nos aproximarmos mais.
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Medo, defeitos e dor
Fisk tem medo de muitas coisas. De perder o respeito da mulher que ama, de se abrir para os outros, de interagir com pessoas. Medo de mergulhar fundo demais no ódio e não conseguir voltar à superfície da sanidade controlada.
Ele mostra sua dor pelo estado atual de Hell’s Kitchen. A dor pela perda de Wesley, seu único amigo. A dor por sua mãe. A dor por ter seu sonho destruído por alguém que não consegue entendê-lo.
Matt e Wilson são lados diferentes da mesma moeda. Ambos querem salvar sua cidade. O que os separa é como tentam fazer isso, e é aí que os defeitos de Fisk ficam evidentes.
Ele não tem empatia por quem está fora do seu minúsculo grupo pessoal. Matar, extorquir, destruir, subornar, são apenas detalhes do meio para atingir um fim: reconstruir Hell’s Kitchen.
O interessante é que ele não um demônio lutando contra os paladinos da justiça. Se sentássemos para bater um papo com Wilson, provavelmente entenderíamos seus argumentos. O Demolidor promove o mesmo terrorismo que Fisk, com exceção das mortes (até a luta contra Nobu) e da escolha dos alvos. A linha moral entre certo e errado é tão fina quanto a navalha que Wilson deve usar para raspar a cabeça.
Aí está minha humilde análise de Wilson Fisk. No fim da série, temos dois anti-heróis: o Demolidor e o Rei do Crime, lutando pelos mesmos objetivos, com meios distintos. Enquanto Murdock abraçou o catolicismo e decidiu se abster, sempre que possível, do assassinato, Fisk não possui limites.
Se o nome da série fosse Rei do Crime e tivéssemos Fisk como protagonista, tenho certeza que nossa torcida seria para o sucesso do “vilão”. Assim como foi feito de maneira genial em Breaking Bad.
Bela análise.
Embora eu não tenha entrado no hype da galera toda das interwebs pela série, assisti no meu ritmo todos os EPs da primeira temporada, e, de forma inédita para mim, assisti dublado e gostei muito do que vi. Para não dizer que ví a série toda dublada, os dois primeiros EPs (a série tem como ponto alto os dois primeiros e os dois últimos pra mim), em inglês, e depois desencanei e fui para a dublagem, e o trabalho brasuca em passar a dor do Rei do crime foi impecavel. Cada fala do Fisk parece que é pensada semanas antes de ser proferida, quando seu planejamento não dá certo e ele perde a cabeça você ve no retorno dele à sanidade que há dor e angústia no âmago dele e isso não é facil, e a dublagem, que muita das vezes faz com que algo se perca, mesmo com atuações muito bem intencionadas, dessa vez conseguiu cumprir muito bem o seu papel.
O Murdock pra mim, comparado ao Rei do Crime chega a ser um pouco sem graça, eu nunca fui fã do personagem, nem nos quadrinhos que leio tanto, porém a falta de amor próprio que ele possui acaba fazendo com que eu me distancie um pouco do personagem, diferente do Wilson Fisk, onde o lado humando recebe uma exposição mais próxima para o espectador.
Muito boa análise! Vamos ver o que a segunda temporada nos reserva.
Fala, Thiago! Eu também nunca me identifiquei muito com o Demolidor. Tenho problemas com esse tipo de moralismo barato (não vou matar, só espancar, aleijar e deixar em coma). Por isso o Fisk foi uma grande surpresa pra mim. É difícil ver um antagonista tão bem feito a ponto de nos identificarmos mais com ele do que com o herói.
Os dois primeiros episódios são realmente acima da média. Mas também gostei muito dos cinco últimos. E sobre a dublagem, que bom que o trabalho ficou legal! Eu vi legendado, mesmo. Aguardo a segunda temporada. Tomara que continuem desenvolvendo os personagens assim.
Obrigado por mais uma participação!
Curti a análise! Estou fazendo uma analise de Wilson e suas relações familiares para um trabalho de Psicologia Social, mas estou seguindo uma linha mais psicanalítica, mas acho que a essência de Wilson é bem essa mesmo que você descreveu. Muito bom!