Sem spoilers.
Outro livro que chamou minha atenção logo na capa. A ilustração de Sangue e Fumaça — feita pela própria autora, Cecília Reis — promete uma aventura fantástica de capa e espada, mas a história não é bem assim. É melhor ainda.
Sinopse
A Irmã da Espada conta a história de uma monja peregrinando pelo interior de um país fictício chamado Arconcione, lidando com uma missão sagrada que faz cada vez menos sentido à medida que a própria depressão fica mais pesada. Nesse primeiro volume da série, nossa heroína chega em uma vila desconhecida bem a tempo de interferir num ritual de vida e morte, tendo de lidar com as consequências de atender o chamado dos espíritos.
A Irmã da Espada é uma fantasia romântica com toques de colonialismo brasileiro, o que quer dizer que cavaleiros convivem com coronéis, fortes e um regime econômico mercantilista. A tecnologia não é tão avançada, mas há grandes navegações, armas de fogo, agricultura predatória e migrações. A parte romântica quer dizer que o foco na narrativa é em relações de personagens e o desenvolvimento de laços entre eles, mas não sem abrir mão de aventura, combate e mistérios.
A história começa quando a protagonista, uma Irmã da Ordem, chega numa vila para se intrometer em um ritual de sacrifício. Descobrimos mais sobre nossa heroína e sua motivação como monja paladina a serviço da justiça da Deusa Una.
Em qualquer lugar do país, era difícil que não soubessem ao menos um pouco sobre os Irmãos da minha ordem.
Nossos contos não eram de brutalidade e conquista, mas de doação. Sacrifício.
No primeiro capítulo já temos sangue nas páginas e experimentamos como a autora lida com cenas de ação. Pra mim, ela acerta em cheio. Não há descrições exageradas de golpe por golpe; Cecília Reis cria uma pintura com pinceladas gentis, e sempre mantém a motivação por trás da ação nos monólogos internos da protagonista.
A monja carrega uma espada cega que se afia com o poder da Deusa, recebido se a causa de sua luta for justa. E o poder não serve só para a espada. É um tipo de energia para aumentar sua força e lidar com o sobrenatural.
A protagonista é uma figura devota, quase que cegamente, mas atormentada pelo seu dever. Confia no julgamento da Deusa, mas às vezes a dúvida a consome. O mundo é cruel, e são as pessoas que o tornam assim, e a monja se pergunta por que se incomodar em salvar quem não deseja salvação.
Algumas vezes, você quer praticar o amor da Deusa e perdoar a todos, mas as pessoas não deixam.
Em 110 páginas, um livro curto, a Cecília conseguiu desenvolver bem as camadas da protagonista e explorar os detalhes do cenário.
A jornada da monja nos mostra como o coronelismo atua no mundo de Arconcione ao lado de espíritos, magia e rituais religiosos. Cavaleiros de espada na bainha interagem com coronéis de revólver no cinto, freiras cuidam de igrejas frequentadas por soldados, e por aí vai. Essa mistura deu um sabor original ao livro. Eu esperava um mundo de fantasia mais genérico — que não me incomoda nem um pouco —, mas fui surpreendido com esse tempero abrasileirado.
O coronelismo é acompanhado de uma forte presença da religião na política local. As Ordens da Deusa atuam como uma espécie de polícia itinerante.
A presença de magia no livro também foi bem colocada. É uma presença sutil, daquelas encontradas no realismo mágico, acompanhada de doses de folclore brasileiro. Embora abstrata, tem uma importância fundamental na trama.
Sua alma era bastante ruidosa. Quando a minha pele astral tocou a sua, elas conversaram ligeiramente, trocando luz e sabor, e fiquei na dúvida se ele não era um real Sacerdote de alguma das ordens. Mas não era, ou teria se revelado para mim como tal, eu acreditava.
Como eu disse, o livro é curto, e a autora tem bastante coisa para apresentar. Por isso, achei que em algumas partes ela conta demais em sumários, em vez de mostrar com ação e conflito. Isso não me incomodou tanto porque a prosa é maravilhosa, com um quê de poesia. Eu achei o estilo de Cecília florido o suficiente para manter a exposição interessante e pouco cansativa.
Maria era seu nome. Era uma jovem bem esperta, de olhar sagaz, cheia de opiniões, sábia o suficiente para não sair despejando-as sem ser perguntada, mas com aquela rebeldia de dar uma resposta cortante no momento certo.
Outro ponto que não gostei tanto foi a diagramação do livro. Três coisas me incomodaram nesse aspecto:
- Em quase toda página há palavras espaçadas por algum erro de compilação.
- Não há indentação (recuo) nos parágrafos.
- Todo parágrafo tem espaçamento duplo.
Esses dois últimos pontos criam paredes de texto que atrapalham um pouco a leitura. São pontos menores, mas que achei necessário mencionar. Um pouquinho a mais de tempo investido nessa área tornaria a experiência ainda melhor.
O que gostei
+ Cenário original que mistura coronelismo, realismo mágico e doses de RPG capa e espada.
+ Uma protagonista com camadas bem construídas, dividida entre sua fé na Deusa e o peso de seu dever como monja.
+ Prosa gostosa de ler, com descrições e passagens quase poéticas.
+ História curta, mas satisfatória.
O que não gostei tanto
– Muito uso de sumários narrativos para “contar” partes da história e caracterizações, em vez de cenas com conflito mais desenvolvidas.
– Erros de diagramação.
Sangue e Fumaça (Irmã da Espada #1) mistura coronelismo, realismo mágico e doses de RPG para iniciar uma série de fantasia original e interessante. A história tem uma pegada mais descansada, apresentando as engrenagens que movem Arconcione aos poucos, mas nem por isso deixa de emocionar e nos prender em uma jornada de dor, questionamentos e sacrifício, ao lado de uma monja dividida entre a fé e o seu próprio conceito de justiça.